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Quinta-feira, 24 de Outubro de 2024, 16h:25 - A | A

Bets: a nova pandemia

Entretenimento ou dependência? Essa é a questão fundamental que especialistas em comportamento e sociedade, e até mesmo o Ministério da Saúde vêm chamando de ‘epidemia das bets’. Hoje milhões de brasileiros e brasileiras, a imensa maioria composta por trabalhadores de baixa renda, estão vulneráveis em relação a essas apostas.

Legalizadas no Brasil em 2018, no governo de Michel Temer, mas  sem uma regulamentação adequada, as plataformas de apostas online - as bets - têm cada vez mais sequestrado a atenção de pessoas e trazido consequências severas aos apostadores. São prejuízos à vida social e econômica, muitas vezes não percebidas por quem está viciado.

Em entrevista à imprensa, no fim de setembro, a Ministra da Saúde, Nísia Trindade, já havia classificado o vício em bets como uma pandemia. “O vício em apostas no Brasil deve ser encarado com a mesma gravidade que a dependência do tabaco”, disse ela a jornalistas.

Entre as consequências do vício em bets estão o comprometimento da renda, o endividamento pessoal e familiar e até a perda do emprego, a depender de como a dependência evolui. Também a falta de socialização e a piora da saúde mental com efeitos na compulsão, causando depressão e ansiedade, entre outras patologias psíquicas são efeitos colaterais do vício.

Os números comprovam à rendição dos brasileiros às bets. Entre junho de 2023 e junho de 2024, cerca de R$ 68,2 bilhões de reais foram gastos nessas apostas online. Os dados foram levantados pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), que alerta para prejuízos também para a economia do país. Cerca de 1,3 milhão de brasileiros foram colocados em situação de inadimplência por causa das bets, retirando R$ 1,1 bilhão do consumo do varejo nacional, diz o levantamento.

A primeira dose

As bets estão onde o apostador está. O acesso fácil pelo celular se torna um estímulo constante ao vício. Além disso, outros fatores contribuem para que o apostador se torne refém como a união da aposta a uma paixão nacional, o futebol, como é na maioria das bets atualmente. A possibilidade de apostar tendo independentemente da idade que o apostador tiver, em especial, menos de 18 anos, também é um fator a se considerar. No Brasil, o Banco Central (BC) avalia que a maioria dos apostadores, com ou sem diagnóstico de transtorno de jogo tem entre 20 e 30 anos, ou seja, são adultos jovens.

O sistema é tão atrativo aos desavisados que, promocionalmente, as bets incentivam novos apostadores a aderir à ‘moda’, concedendo bônus em dinheiro para as primeiras apostas. Algumas dão o crédito, de graça, outras duplicam o valor depositado. Funciona como um ponto de partida para o vício. Uma vez dentro do sistema, é comum o apostador ver sua ânsia em apostar aumentar a cada dia.

Problema social

O Portal da CUT ouviu especialistas para traçar um panorama de possíveis causas para o vício nas bets. Professora doutora em Ciências Sociais e mestra em História pela PUC-SP, Terezinha Ferrari, avalia que os moldes da sociedade capitalista ‘empurram’ os trabalhadores, em especial os de baixa renda, para o vício nas bets, dada a promessa de dinheiro fácil e rápido.

“É uma busca pelo dinheiro rápido para ser gasto rapidamente, e quase sempre para pagar alguma dívida, ou seja, um gasto para continuar sobrevivendo. E vira uma bola de neve que mina a condição de auto controle”, diz a professora.

Dessa forma, o apostador, que precisa de dinheiro, é “bombardeado por uma propaganda genial, de coisas bonitas, vistosas e ao mesmo tempo tem dívidas”, se tornando, então, vulnerável.

Por isso, ela explica, as pessoas acabam classificado as apostas como ‘vício’, mas é importante considerar que a prática, na verdade, transforma o sujeito em uma vítima.

Não é uma culpa dele mesmo. Ele vive em um sistema social que o leva a agir desse modo. O apostador se vê em um círculo vicioso que o leva à dependência
- Terezinha Ferrari

Problema estrutural

Terezinha Ferrari também faz uma análise sobre as relações de trabalho, deterioradas ao longo dos anos, como fator responsável pela condição de vulnerabilidade dessas pessoas que ela aponta como vítimas.

Ela explica que há “uma escassez de emprego formal hoje na sociedade, ou seja, de postos de trabalho organizados, com carga de trabalho definida, com período definido, com férias e demais direitos, com legislações que garantam o ganho pelo trabalho executado”.

O Brasil teve nos primeiros anos do século 21, diz a mestre em Ciências Sociais, uma estrutura que ofereceu quantidade grande de empregos formais. “Havia uma sociedade em expansão e uma enorme oferta de emprego. Hoje, estamos em uma sociedade sustentada em tipo de produção que dispensa a força de trabalho”.

Além da utilização de novas tecnologias que substituem a mão de obra, a professora cita como exemplo também o agronegócio “que é uma das principais atividades econômicas do país, mas emprega muito pouca gente, e ainda ocupa grandes proporções de terra que poderiam ser ocupadas por uma população fazendo o trabalho de agricultura sustentável”.

Ao mesmo tempo, ela explica, há um mercado de consumo amplo, diverso, colorido, atrativo e um apelo à diversão e, “tudo isso custa dinheiro”.

São condições que levam esses apostadores à ilusão de que podem enriquecer rapidamente ou mesmo, garantir um certo ‘lucro’ com as apostas para sanarem seus problemas econômicos.

Causa e efeito

Referindo-se à promessa de ganho de dinheiro teoricamente ‘fácil’, a jornalista e psicanalista Maria Rita Kehl aponta que, apesar não ser generalizada dada a diversidade humana, ocorre de ser uma alternativa adotada pelas pessoas que “têm pouco dinheiro”. Ao citar a ‘vulnerabilidade’, ela pontua que é preciso refletir sobre a responsabilidade de quem promete o dinheiro rápido.

“Muitas pessoas têm pouco dinheiro, são cheias de dívidas. Não digo sobre o ser humano em geral, mas se alguém disser para um endividado, com medo de perder casa, ‘aposta que você tem chance de ganhar’, ele aposta, diz a psicanalista.

O problema e quando a aposta se torna um vício. “Uma coisa é tentar loucamente ganhar um dinheiro e sair das dívidas. É compreensível, apesar de ser questionável a conduta de quem está ganhando dinheiro com isso, ‘em cima de gente que faz isso pelo desespero’, já o vício é outra dinâmica”, dia Maria Rita Kehl.

Ela explica que uma prática qualquer, mesmo sem prejuízos financeiros, quando passa a causar um mal estar, cria uma dependência é uma situação de atenção, em especial quando o indivíduo deixar de fazer outras coisas de seu interesse como ler, ver filmes, trabalhar, etc.

Para ela, o vício depende de duas coisas. Uma é o desamparo, um sentimento de solidão, de falta de expectativas”, explicando ainda  que há vários e diferentes fatores que podem ocasionar e classificar essas situações. 

Outra é que o vício oferece algo tentador. “Você pode perder, perder, perder, mas de repente ganha uma bolada”, ou mesmo em vícios sem riscos financeiros, enquanto não é atingida uma meta, o indivíduo não se contenta.

É um jogo mental que, aos poucos, vai deprimindo e a pessoa não percebe. A depressão, a angústia, entre outras coisas, acontecem quando a pessoa sente que ficou capturada em uma roda e não acha a saída dela. As apostas têm isso, só que a pessoa que sente mal, vazia, oca, vai tendo na aposta uma projeção, uma possiblidade de dar a volta por cima no mal estar
- Maria Rita Kehl


Ainda sobre apostas, ela observa, assim como a professora Terezinha Ferrari, que o acesso se tornou mais fácil ao longo dos anos. “Antes havia as apostas em cavalos, em bingos, mas o diferencial de hoje em dia é que as cosias chegam na sua casa, no seu celular. Não precisa ir ao jóquei ou ao bingo para ‘perder’ dinheiro”, afirma a psicanalista.

Atenção aos sinais

Ao identificar a dependência, o mais indicado é a busca por ajuda especializada. Entre os meios disponíveis a assistência nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) mais próximos.

No campo da psicanálise, Maria Rita Kehl explica que é possível um profissional da área responder por quê a pessoa se viciou. “Há instrumentos para isso”, ela diz. Mas, afirma também que não esse profissional que dirá o que pessoa precisa fazer para sair da situação.

Por isso, ela reforça a busca por ajuda especializada. E exemplifica com pessoas dependentes químicas ou de álcool, que devem buscar ajuda em instituições como Narcóticos Anônimos (NA) e Alcoólicos Anônimos (AA). “A primeira atitude no AA, por exemplo, é reconhecer que está viciado. Não é a psicanálise, são essas instituições”, ela pontua.

Perfil dos apostadores

Dados da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) mostram que o futebol é a principal modalidade nas apostas on-line esportivas, com público majoritariamente masculino.

Cassinos on-line, como o Jogo do Tigrinho, é a segunda modalidade mais popular das apostas pela internet, com público majoritariamente feminino (60% de mulheres contra 43% de homens).

A grande popularidade do Jogo do Tigrinho com o público feminino é ainda mais preocupante, pois tende a ter efeitos piores do ponto de vista social, uma vez que benefícios sociais são pagos, preferencialmente, para as mulheres. Assim, o vício em jogos de azar desse público pode ter efeitos perversos sobre pobreza e desigualdade.

Saúde pública

O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, reuniu-se, no último dia 3 deste mês, com ministros de Estado para tratar da regulamentação no Brasil e riscos para a saúde da população a partir do uso das páginas de apostas, as conhecidas Bets na pronúncia em inglês.

As informações foram divulgadas no portal oficial do Ministério da Saúde.

“Tem muita gente se endividando, muita gente gastando o que não tem, as pessoas estão dependentes, estão viciadas”, disse o presidente na reunião.

Já a ministra da Saúde, Nísia Trindade, afirmou que vai reforçar junto à Atenção Primária de Saúde um olhar especial a esse problema por meio do fortalecimento dessa pauta nas Equipes de Saúde da Família.

Afirmou ainda que as consequências do vício em jogos são um grave problema de saúde pública no Brasil e no mundo. “Na saúde, sempre temos de olhar ao mesmo tempo a questão da prevenção e promoção da saúde nessa questão dos jogos. Em termos de prevenção é importante o reforço dessa pauta, por exemplo, no Programa Saúde na Escola. Os programas educativos são fundamentais”, explicou.

A ministra contou que está propondo uma classificação internacional de doenças no que se refere ao “jogo patológico. “É importante no mundo de hoje uma diferenciação aos jogos que são feitos on-line, que requerem medidas específicas”, disse. Trindade acrescentou que é possível trabalhar a pauta a exemplo das campanhas de combate ao tabagismo.

Portal CUT - por: André Accarini | Edição: Rosely Rocha
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